sexta-feira, 4 de junho de 2010

Arcano 00



Este seria o último trem de sexta-feira. E estava atrasado cinco minutos.
A plataforma da Estação Periperi estava vazia, exceto por Cláudio e um velho maltrapilho que dormia, cabisbaixo, em um dos bancos de concreto. O mais era a brisa, os invólucros de doces ambalados pela brisa, e os guardas guardados na guarita, aguardando a novela das nove. Fisiculturistas aplicados, estes distintos defensores patrimoniais devoravam litros de café com pedaços de bolo. Iguarias preparadas por suas mulheres, que aguardavam ansiosas pelo início da novela das nove, enquanto passavam a ferro quente os uniformes dos seus maridos, mulheres-uniformes.
Periperi é no subúrbio de Salvador, e o último trem de sexta estava atrasado cinco minutos. Por causa de um cliente filho da puta que permaneceu no restaurante até as 20:30h, Cláudio teria que pegar o último, o das 21:00h.
Mas eram 21:05h, e a plataforma estava vazia. Cláudio olhou demoradamente para o velho maltrapilho no banco. Ele parecia dormir, com o queixo sobre o peito, e a brisa açoitando seu corpo de espantalho com chicotes plásticos de embalagens de doces.
Cláudio sentou-se num banco, sentindo nas nádegas o frio do cimento. Pegou seu IPod na mochila jeans, afixou os fones nos ouvidos, e programou o aparelho para reproduzir os arquivos no modo aleatório.
Em instantes, as guitarras distorcidas do Cream invadiram seus neurônios, e a arrastada Strange Brew brincava na zona de associação do seu cérebro.
Quando a canção ia pela metade, Cláudio lançou o olhar na direção de onde viria o trem. Ele estava vindo. Seu farol estrelar cintilava ao longe, e se tornava mais e mais potente, transformando os trilhos em dois fios luminosos paralelos. Cláudio levantou-se, e o trem não tardou a estacionar seu corpo de serpente metálica com ranhidos ensurdecedores, minimizados pela bela canção do Cream.
As portas se abriram, e Cláudio entrou em um vagão. Olhou ao redor em busca de um lugar para sentar, mas todos estavam ocupados.
Iria em pé mesmo.
A viagem até Paripe era curta, e era melhor evitar os vagões desertos. Strange Brew ainda psicodelizava seus pensamentos, quando o trem começou a se mover, dando seus solavancos iniciais. No primeiro, Cláudio olhou para fora, e notou que o velho maltrapilho não ocupava mais o banco. No segundo, alguém perdeu o prumo e chocou-se contra Cláudio.
O trem já caminhava em sua marcha, quando o fã do Cream viu que quem se chocava contra si era o velho maltrapilho.
Uma mulher de meia-idade levantou-se. Cláudio achou que ela iria para outro vagão, mas ficou de pé, segurando uma das barras de ferro.
-A senhora vai sentar aqui?
A mulher negou com um movimento lento da cabeça. E Claudio sentou-se.
Como Strange Brew ainda estava tocando, ele julgou que tinha acionado a função "repetição" sem querer. Abriu a mochila, pegou o iPod, e viu que tal função não estava acionada. Tentou selecionar outra música, mas o aparelho não obedecia aos comandos. Irritado, tentou desligar, sem resultado.
Após os últimos acordes de Strange Brew, Claudio aguardou. A mesma música teve início novamente.
-Porra, comprei essa merda um dia desses e já tá com defeito. Também, marca fodida...
Retirou os fones dos ouvidos, guardou o iPod na mochila, e pegou um livro: Confissões de um Comedor de Ópio. Thomas de Quincey.
Ele havia comprado o livro naquele dia, e começou a lê-lo naquele momento. Começou e terminou. Leu, deliciado, as confissões de um rebelde tresloucado, que negou radicalmente o modo de vida burguês, e passou a vida a utilizar a si mesmo como objeto de estudo.
Foi quando Cláudio leu o verso de Milton que encerra o livro, que o trem parou. Mas o percurso Periperi-Paripe dura, no máximo, dez minutos.
Mesmo não entendendo como lera um livro de 146 páginas em tão pouco tempo, Cláudio afastou as especulações e levantou-se. A fila de costume estava formada, e as pessoas desciam do trem. Enquanto aproximava-se da porta, Claudio olhou para o lado de fora, e o seu sangue gelou com o que viu.
Aquilo poderia ser tudo, menos a estação de Paripe. Havia um matagal cerrado, que ondulava com o vento, ondas prateadas, reflexo da lua cheia. Os passageiros desciam e embrenhavam-se nesse matagal, umas atrás das outras, e seguiam, até serem totalmente tragadas, de modo que aqui e ali o mato se movia, dando a entender que sua jornada continuava até as zonas abissais daquele estranho mar.
Cláudio permaneceu ali, parado, sem chão, o suor frio e viscoso escorrendo, as pernas trêmulas, a urina quase irrompendo sob as calças.
Ele recuou, e sentou-se, ainda de frente para a porta. Pelo canto do olho viu que ainda haviam três pessoas dentro do vagão, e uma delas, ele sabia, era o velho maltrapilho.
Que merda estaria acontecendo? Estava sonhando? Dormira lendo De Quyncey e imergira num sonho psicodélico? Não seria a primeira vez que tinha um sonho consciente.
Tentou fazer o truque mental que geralmente o despertava desses sonhos. Fechou bem os olhos, mas quando os abriu, lá estava a porta aberta, e o maldito matagal. Pensou em perguntar algo aos passageiros, mas uma vertigem que quase o leva ao vômito o assaltou quando pensou nisso.
As portas se fecharam. E o trem começou a locomover-se. Lá fora, luzes começaram a percorrer a superfície do matagal, como borboletas cintilantes experimentando flores em busca de néctar. Por vezes, uma luz parava sobre um ponto, como se tivesse encontrado a flor mais doce, e ascendia ao céu numa velocidade vertiginosa.
Cláudio parecia estar sendo narcotizado pelo espetáculo das luzes. Embora sentisse muito medo, não conseguia mover-se. Não que seus membros estivessem paralisados, mas ele simplesmente não tinha vontade. Estava apavorado, e ficou muito mais quando strange brew começou a ecoar dentro do trem, como que difundida por alto-falantes ocultos.
Foi então que uma das luzes , que já estava há um bom tempo paralisada, principiou a intensificar-se, o seu brilho ficando mais e mais forte, e a sua circunferência multiplicando-se em tamanho. Ela estava se aproximando, e Cláudio sentia que a luz vinha atraída por ele! Cláudio imaginou aquelas pessoas perdidas naquele matagal sem fim, com aquelas luzes estranhas no seu encalço...Imaginou-se sendo perseguido e capturado por uma delas, e sendo levado sabe-se lá para onde, ou sugado como uma flor suculenta.
A luz não interrompia sua marcha, e já estava tão intensa que os olhos de Cláudio doíam, e suas vistas estavam baças.
Decidiu correr. Não sabia para onde, mas iria correr.
Levantou-se. E antes que completasse o primeiro passo, uma mão o segurou firme pelo braço. Ele gritou de dor e susto, olhou para o lado e viu, entre as brumas da sua retina, um homem fardado, um guarda.
-Tá maluco, porra?!
Era um dos seguranças da estação que agora o sacudia, após percerber que Cláudio não estava em sã consciência.
Cláudio olhou para o outro lado e recuou, assustado. O trem vinha aproximando-se, com seu farol dianteiro iluminando os trilhos, que pareciam fios de luz paralelos. O jovem estupefato olhou para o chão, e viu que estava a um passo do abismo, na orla da plataforma.
- Se quiser se matar, procure outro lugar! – Bradou o segurança.
- Clóvis, começou a novela! – Anunciou o colega de turno, de dentro da guarita.
- To indo! Então, garoto. Não vai fazer nenhuma merda, não é?
- N...não, o meu trem já está vindo.
- É, mas por pouco você não embarca no trem conduzido pela Dama de Negro!
Esta última expressão fez com que se eriçassem todos os pelos do corpo de Cláudio. Strange Brew, ricocheteava entre seus neurônios, os fones estavam em seus ouvidos.
Recuou para trás da linha amarela. O trem estacionou com seu estardalhaço rangente de sempre. Algumas pessoas desembarcaram. Cláudio escolheu um vagão não tão deserto, e embarcou.
As portas fecharam-se, e ele sentou do lado oposto a elas. Olhou para fora, e lá se ia, aos poucos, a Estação de Periperi. Entre os solavancos do trem, ele percebeu que o velho maltrapilho não estava mais no seu banco-dormitório. Sobre este havia um enorme cão preto, que desceu e correu veloz rumo ao breu.
Olhou ao redor, mas nem sinal do velho. Perguntou as horas a um homem com trajes de operário.
- Nove e seis. – respondeu este, em um tom cansado de quem havia sido vampirizado por um dia de trabalho intenso.
Strange Brew emitiu seus últimos acordes. Cláudio viveu alguns segundos de ansiedade extrema, até que finalmente teve início uma outra música, esta do The Doors, Breake on Throug To The Other Side. Respirou aliviado.
Em casa, Cláudio devorava um prato de macarrão meio gelado, que ele empurrava goela abaixo com ajuda de uma cerveja escura. Entre uma garfada e outra, refletia sobre o ocorrido. Entre um gole o outro, a Santa Razão o afagava com suas mãos quentes de mãe gentil. Claro que havia uma explicação. Muitas explicações. Freud, Jung, Campbell..., esses caras não haviam vivido a toa.
No dia seguinte ele aproveitaria a folga para pesquisar o que pudesse na internet, e nas bibliotecas.
Terminou seu manjar punk, fumou um cigarro de menta, e tentou em vão se masturbar. Seu pau não subia. Estava exausto e perturbado demais para a concentração exigida por tal exercício. Foi dormir. Talvez uma noite de sono eliminasse aquela incômoda desconfiança ante o Real. Aquela sensação de estar sobre areia movediça sem jamais submergir por completo. Talvez o sono curasse a náusea.
Naquela noite, Cláudio sonhou que manuseava um baralho de tarô, e ao deter-se na carta “O Louco”, em vez do habitual andarilho medieval prestes a precipitar-se penhasco abaixo, e seu cachorro advertente, o que viu foi ele mesmo, prestes a mergulhar fragorosamente no vazio, com um semblante cotidiano de quem vai embarcar num trem. No lugar do cachorrinho marselhano, um enorme cão preto envolto em trapos o observava, enquanto o guarda o segurava pelo braço. De repente, rompendo a imobilidade da cena fotográfica, o cão virou a cabeçorra e olhou diretamente nos olhos de Cláudio, que soltou todo o maço, assustado.
Cláudio acordou, sobressaltado. Eram 5h30 da manhã. Foi ao banheiro urinar, voltou para o quarto, sentou-se na beira da cama, e acendeu um cigarro, e observou os volteios da fumaça no ar.
O sono não aplacara a sua náusea. Afinal, pode um abismo tornar mais raso outro abismo?

Um comentário:

  1. Gostei do que li por aqui Rammed!
    parabéns pelo blog.
    já o adicionei no meu. "blog dos amigos" no www.contosdevampiroseterror.blogspot.com

    Grande Abraço e obrigado pelas palavras.

    Adriano Siqueira

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